Vó Maria morava na Rua João de Deus, num bairro relativamente pobre e distante do centro da cidade.
A casa onde morava era, no finalzinho da rua, bem afastada das outras casas. Vivia sozinha e só Deus era sua eterna companhia.
Como todas as ruas tranqüilas, as crianças tinham completa liberdade para brincar. Havia um “algo mais” naquele local, talvez a tranqüilidade mesclada com a pureza das brincadeiras infantis ou, quem sabe, fosse típico de uma gente pacífica e sem maiores problemas, salvo a pobreza.
Para as crianças, a presença de vó Maria era parte do universo de suas vidas. Não havia melhor satisfação em ver aquela velhinha varrendo o quintal de sua casa, cuidando das flores e das verduras. Aquela visão era parte de suas existências. E, com certeza, um sentimento de amor no coração de cada um florescia.
Era a avó de todos os pequenos e até de alguns adultos que carinhosamente a chamavam de “vó Maria”. Gostava de como a chamavam e com um meigo sorriso retribuía o carinho de todos. Havia um laço de amor nos olhos de cada um quando ela passava. Vez ou outra estava acompanhada da meninada. Eles só ajudavam a levar alguma bolsa com mantimentos ou roupas que recebia de alguma alma caridosa. Contavam as novidades da escola, as brincadeiras do dia. E ela, com ternura, ouvia cada um que ansiosamente lhe falava. Quando chegavam a porta de sua casa, agradecia e dizia: “ Deus os abençoe”.
Tá bem, vó - respondiam os meninos.
As vizinhas sempre ajudavam com alguma comida que sobrava das refeições. Num bairro pobre, ninguém podia se dar ao luxo de ter excesso de alimento era só mesmo o que sobrava. E o sorriso de agradecimento, envolvia as senhoras. Era a melhor retribuição; um sorriso e “Deus as abençoe”. A caridade quando é feita de coração e com muito amor, é sempre em dobro que a natureza paga. E vó Maria em toda sua humildade, compreendia que o pouco era sempre o necessário a sua subsistência.
Rosto enrugado pelo tempo, corpo curvado pelo peso dos anos e cabelos totalmente brancos. Sempre que saia de casa colocava um xale na cabeça. O sol maltratava sua velhice e facilmente se cansava.
A ternura do seu sorriso e o olhar profundo desmanchava toda atitude brusca do ser humano destituído de sensibilidade e carinho.
Passos lentos, no seu vai e vem dentro de casa; arrumava, varria, limpava o pouco que possuía. O lar cheirava a limpeza. Quando saía, era por necessidade, e quase sempre em busca de algum alimento. Nos dias de feira, quando as barracas já estavam sendo desarmadas, recolhia alguma sobra de legumes, batatas estragadas e que não eram vendidas, mas que certamente havia algo nelas que podia se aproveitado.
Era uma vida difícil, mesmo assim, havia o conformismo, a aceitação e a felicidade de viver. Com semblante sereno não demonstrava nenhuma revolta pela situação que vivia.
Certa vez, os meninos brigavam a socos e pontapés por causa de uma pipa que havia caído na rua. Cada um queria ser o dono. Enquanto digladiavam-se, não notaram que ela se aproximava do local da contenda. Vinha da feira e trazia uma sacola cheia e com certo sacrifício, caminhava a passos lentos.
Parecia que eram os anos que observavam as novas criaturas que surgiam lutando por um espaço entre seus iguais, mostrando sua força, valentia e a supremacia do menino-homem. Ela parou na calçada, colocou a sacola no chão e silenciosamente observou a briga. Envolvia a todos com seu olhar, e os brigões sentiram que alguém os observava. Havia uma vontade maior sobre eles que os tranqüilizavam e os deixavam sem ação. Lentamente pararam e baixaram a cabeça como envergonhados por uma tolice.
- Desculpe, vó. Foi só por uma pipa. Deixe-me ajudá-la - disse um deles.
E lá foram os meninos ajudando a vó Maria.
Enquanto andavam, contaram que a pipa havia caído e não tinha dono. Estavam disputando a quem deveria pertencer.
Ela ouvia em seu silêncio.
- Sabe, vó. Tenho uma idéia. Vamos fazer outras pipas iguais a esta - e mostrou. - assim agente não briga.
E vó Maria só ouvia, bastava isso e todos ficavam satisfeitos.
Quando chegaram ao casebre, eles a ajudaram a colocar a sacola na cozinha. A cada um ela presenteou com uma fruta e todos saíram aos saltos.
Isolada, vivia sozinha no casebre. Era misterioso seu passado e nunca ninguém perguntara de onde tinha vindo. Talvez não tivesse ninguém para cuidar dela. Pensava algum deles sem comentários.
O dia se passava lentamente, e quando a noite chegava, a casa era iluminada por uma lamparina fraca, quase sem vida. Saía para admirar o céu pontilhado de estrelas e nas noites enluaradas, sentava-se no seu banquinho para apreciar as brincadeiras dos meninos.
Alguns anos se passaram e vó Maria ficou um pouco mais fraca. Agora, sua companhia era um cajado para sustentar seus passos trôpegos.
Dizem que, certa vez a polícia fazia a ronda pelo bairro em busca de um marginal que lhe havia escapado. Todos sabiam que estava armado e era muito perigoso.
O bandido era um foragido e acuado era mais perigoso ainda. O bairro inteiro estava apavorado com a possibilidade de ter o sujeito frente a frente. As crianças foram para suas casas, proibidas de sair naquele dia ou até a polícia conseguir prender o marginal.
O sol já estava se pondo, quando um menino, da janela de sua casa, viu um homem correndo, esgueirando-se e entrar na casa de “vó Maria”.
O menino chamou os pais e contou o que vira. Logo em seguida quase todos já sabiam o que estava ocorrendo. Mesmo assim, ficaram com medo. Alguém saiu para chamar a polícia. Poucos momentos depois a casa foi cercada.
Com a polícia na rua, as portas se abriram e a rua já estava cheia para presenciar a prisão do marginal. Aos gritos a polícia dava ordens para o bandido sair de mãos para o alto ou entrariam atirando na casa. O pessoal que olhava de longe, aterrorizado, pedia que não houvesse violência para não por em risco a vida de vó Maria.
Não se ouvia barulho dentro de casa, não havia sinais violência. A polícia já se aproximava da porta para derrubar quando vagarosamente ela se abriu e vó Maria apareceu primeiro. Na mão direita segurava o cajado e na esquerda puxava a mão do bandido. Ele, de cabeça baixa, deixava-se levar pelas mãos da anciã.
Foi um dia e tanto para a rua João de Deus. Os vizinhos procuraram ser úteis em alguma coisa diante da indefesa velhinha. As crianças pegavam na mão enrugada e trêmula para constatar que tudo estava bem.
- Vó, ainda bem que nada aconteceu com você.
- Parece que você salvou até mesmo o bandido.
- Da. Maria, a senhora nos acompanhará até a delegacia para prestar depoimento. - disse o policial.
- Seu polícia, vó Maria não pode ir. Ela é muito velhinha e precisa descansar.
- Alguém tem que prestar depoimento.
- Não precisa, eu sou o bandido e posso falar que entrei na casa da vovó.
Assim ficou tudo resolvido e “vó Maria”, ajudada pelas vizinhas, recolheu-se.
Passaram-se meses após esse acontecimento e o bairro ainda comentava o ocorrido.
Naqueles dias, uma vizinha estava para dar luz a seu primeiro filho. Já estava em trabalho de parto, quando a parteira chegou, um pouco ofegante, e examinando a gestante, observou que não havia tempo suficiente para chamar um médico ou levá-la à maternidade. Deu ordens ao pai para ferver água, pegar panos limpos, trazer uma bacia e chamar Da. Isabel para ajudar. Após fazer concluir os primeiros mandados, correu em busca de uma vizinha.
Da. Isabel veio entrou correndo casa adentro, já sabendo o que a esperava.
A mamãe transpirava e gritava de dores. A parteira constatando que o parto não podia ser realizado em casa, pois a criança estava atravessada. Por ali não havia maternidade, tampouco médico algum morava nas redondezas; as dores aumentavam e o desespero ia tomando conta do pai e de algumas vizinhas que se aglomeravam pela casa.
Alguém na cozinha voltava a esquentar mais água e outras rezavam para acontecer o milagre da vida. O pai não sabia o que fazer; caminhava, fumava, pedia a Deus pela salvação do bebê e da esposa. Alguém sempre a seu lado, falava para se acalmar e não demonstrar nervosismo na frente da mulher.
As dores e gritos aumentaram e as mulheres entravam e saiam do quarto já um pouco desesperadas. Naquele vai e vem, ninguém notou a entrada de vó Maria. Com seu cajado e a passos trôpegos, aproximou-se da gestante. E esta, com o olhar suplicava um milagre, uma salvação para seu filho.
A divina criatura, em silêncio, envolveu a parturiente com um olhar terno. Colocou a mão em seu ventre e a mamãe sentiu um calor percorrer todo o seu corpo. As dores foram diminuindo, lágrimas de alegria e um misto de satisfação inundavam aquela criatura esperançosa em ser mãe.
A parteira presenciava o acontecimento com lágrimas nos olhos. Sentiu a criança mexer-se e deslizar até suas mãos experimentadas de tantos partos.
Ouviu-se um choro de criança e a alegria abençoada daqueles que estavam vendo o milagre da vida.
Alguém disse que a mão de um anjo tinha feito tudo.
Um misto de paz e alegria percorreu o lar e, num certo momento, vó Maria retirou-se sem que ninguém notasse.
O dia mal amanhecera e as crianças já brincavam nas calçadas. De repente, todos pararam para observar dois jovens que passavam por ali. Houve um silêncio entre os mortais.
Dois jovens trajando roupas brancas, altos e de bonita aparência, caminhavam silenciosamente em direção ao final da rua. .
- Será que são médicos? - comentaram.
Todos se levantaram e acompanharam com o olhar os passos dos estranhos. Os dois pareciam conhecer o caminho. No final da rua, só havia a casa de vó Maria e foi lá que entraram.
Os meninos, perplexos e temerosos que algo tivesse acontecido deixaram os brinquedos de lado e correram até o casebre. Atrás deles estava a maioria dos seus pais que também tinham visto os estranhos.
Pararam a uma certa distância com receio de que algo estivesse acontecendo.
- Eles não são médicos. Não vieram nem de ambulância - comentaram os meninos.
- Será que podemos entrar?
- Eu vou ficar junto de vó Maria.
Os meninos caminharam na frente. Silenciosamente abriram a porta e entraram. Havia silêncio quebrado pelas vozes dos que entravam. Ninguém encontrou vó Maria, não havia ninguém em casa. No quarto a cama vazia, um banquinho e um crucifixo pendurado na parede. Foram a cozinha e também não havia ninguém. A porta estava fechada por dentro.
- Mãe, o que aconteceu com vó Maria? - desconsolado e sem entender, perguntava o menorzinho da turma.
- Não sei, filho. Parece que vó Maria foi levada pelos anjos.
- Eu vou ficar sem vó Maria? - entre lágrimas comentava outra pequena criatura.
Uma agradável brisa soprou a rua do bairro e uma criança disse para a mãe:
- Eu acho que vó Maria subiu com o vento e foi morar nas estrelas. Ela sempre olhava para o céu.
Fim